HOMO CURITIBANUS
Famoso nacionalmente por não falar com estranhos, jamais visitar alguém sem telefonar antes e nem sempre cumprimentar o vizinho de porta, o curitibano é tido como o povo mais frio e arredio do Brasil. Mas será que na prática é mesmo assim?
Por Simone Mattos
ilustração Bruna Alves Assis Brasil
“Os curitibanos são uma estranha tribo que se alimenta de pinhões, mas reside em casas iguais às nossas.” Com esta frase, escrita em 1967, o jornalista e poeta pernambucano Fernando Pessoa Ferreira começou a sua crônica Curitiba, a Fria e deu início a uma imensa polêmica na cidade, ganhando furiosos editoriais em todos os jornais da época. O inspirado texto de 15 laudas contava com muitos outros trechos irônicos e fora encomendado por Paulo Francis para publicação na coleção que editava: Livro de Cabeceira do Homem, da editora Civilização Brasileira. Ferreira viveu uma década em Curitiba, foi superintendente do Teatro Guaíra e criou o Teatro de Comédia do Paraná, entre outros feitos.
Recentemente, sua crônica foi reproduzida na íntegra no divertido livro Curitiba, Melhores Defeitos Piores Qualidades, do chargista e escritor catarinense Dante Mendonça, que vive há 40 anos na cidade.
Ele tem uma explicação histórica para a frieza do povo curitibano: “Começou na metade do século 19, quando Saint-Hilaire chegou aqui e não foi recebido por uma escola de samba. Assim sucedeu com os demais visitantes ilustres que chegaram à cidade, o único a levar uma imagem calorosa foi (o papa) João Paulo II”, diz Mendonça. “Enfim, o curitibano tem fama de povo arredio e frio porque a cidade não tem uma escola de samba que preste”, resume.
Em sua perspicaz avaliação, Curitiba tem traços inconfundíveis:
“É a única cidade do mundo onde um de seus habitantes é invisível: Dalton Trevisan, ninguém sabe, ninguém viu. Também apenas em Curitiba as pessoas são elogiadas pelas costas.” Mas ele garante que o perfil da cidade está mudando. “Houve um tempo em que encontrávamos todos os curitibanos no Passeio Público, aos sábados, comendo bolinho de arroz e planejando a cidade lá no Bar do Pasquale”, analisa. “Hoje, aos sábados, é mais fácil encontrar um curitibano no Mercado Público de Florianópolis.”
UM BRASIL DIFERENTE
O escritor Carlos Alberto (Nêgo) Pessôa, que descreve com sutileza ácida vários lugares-comuns presentes na cidade, em seu livro Modos & Modas, acha que o curitibano é arredio pela ascendência europeia e também pelo clima e altitude locais. Nascido em Irati, interior do estado, onde morou até a adolescência, Pessôa teve fácil adaptação quando chegou aqui para viver. “Não tive nenhum problema de aceitação, todas as portas se abriram facilmente... é chato ser bonito, gostoso, medir 1,83 m, ser magro, simpático, inteligente, engraçado”, brinca. “Não há problema com Curitiba; o problema é dos inadaptados.” Embora ele ache que “a olho nu o curitiboca não se distingue de um marciano, sendo necessário se aproximar e ouvi-lo”, o escritor garante que já se sente um curitibano “há muitos anos e por escolha”, confessa.
Mendonça, que é pai de dois curitibanos, Pedro e Luiza, garante que também não teve problemas de adaptação em Curitiba. “Minha experiência pessoal ao chegar para morar aqui foi a melhor possível, porque minha primeira impressão foi aquela do curitibano bem-humorado que me contou a seguinte piada:
Sabe por que em Curitiba ninguém se cumprimenta?
Porque, para uma cidade ser considerada grande, as pessoas não devem se cumprimentar”, ironiza.
O titular do blog negopessoa.com/blog lembra que os nativos daqui não são produtos da clássica mistura nacional entre português, negro e índio. “Não à toa, Wilson Martins escreveu Um Brasil Diferente”, diz. No livro, o saudoso autor contrariou a tese de que todo brasileiro é fruto de tal mistura, da qual os paranaenses fugiriam à regra. “O curitiboca não vive no litoral nem nos tristes trópicos: seria estranho se não fosse diferente”, diz Pessôa. Num dos trechos mais contundentes de seu livro Modos & Modas, aborda o velho e bom assunto do carnaval local. “O que fazer com o carnaval em Curitiba?
Transferi-lo pro litoral, despachá-lo pra Antonina via Graciosa.
Com frete pago. Dois micro-ônibus serão suficientes para limparmos a cidade dos mais teimosos foliões.”
MITO OU VERDADE
Brincadeiras à parte, na opinião da psicóloga curitibana Rafaela Senff Ribeiro, tantas lendas e mitos em torno do seu suposto comportamento frio se transformaram num pré-conceito sobre os curitibanos, o que faria com que as outras pessoas, diante deles, adotassem uma postura diferente, de defesa. “Isso consequentemente faz com que o curitibano responda a esse comportamento, fugindo de sua atitude natural; se as pessoas não tiverem esse pré-conceito, acredito que a relação a ser estabelecida será diferente”, afirma.
Além disto, para ela, o curitibano atual não é o mesmo de dez ou cinco anos atrás. “Já foram mais frios”, garante. Antes, o caráter arredio era evidente na forma como as famílias educavam seus filhos e nos relacionamentos: mais abertos apenas com aquele grupo conhecido e escolhido a dedo, enquanto se evita o contato com os demais. “Devido à avalanche de informações, globalização e acesso a informações, para sobrevivência, foi necessário abrir-se para o mundo e sair da redoma curitibana”, explica.
Rafaela acha que houve uma grande mudança de postura do povo, “passando de frio e arredio, para exigente, crítico e desconfiado, tanto que a cidade é um dos laboratórios na aprovação de produtos novos para o mercado”, comenta. Entre as principais características, além do alto grau de exigência, a psicóloga destaca a obediência, o comprometimento e o vestir-se bem. Na lista dos pontos fracos, ressalta a preocupação exacerbada com a opinião do outro, a resistência às mudanças ,e a impaciência. “Por exemplo: a pessoa fica duas ,horas num restaurante, mas quando decide ir embora e ,pede a conta, quer que ela venha em cinco minutos.”
O CURITIBANO POR UM CURITIBANO
O jornalista, advogado e estudante de Antropologia Eduardo Emilio Fenianos conhece seus conterrâneos como ninguém. Anos atrás, passou exatos cem dias viajando por Curitiba, sem retornar para a sua casa.
A expedição lhe permitiu conhecer todos os bairros e todas as ruas, além de ter navegado 216 quilômetros pelos rios Barigui, Passaúna, Atuba, Belém e Iguaçu.
Durante o período, hospedou-se exclusivamente em residências de moradores da cidade, onde também fez todas as refeições. O objetivo principal era captar o modo de viver dos curitibanos. A viagem – que o tornou nacionalmente conhecido como Urbenauta – resultou numa coleção de 34 livros sobre os bairros da cidade, um romance diário de bordo, um filme, a correção de 800 erros no mapa da cidade, a edição de mais de um milhão de mapas, um álbum fotográfico, um livro infantil, dois guias e várias séries para TV. Mas o mais importante foi a sua percepção e observação pessoal sobre a cidade e seus habitantes, sobre o que conversamos com ele.
TopView: Por que o curitibano tem fama de povo arredio e frio?
Eduardo Fenianos: Porque realmente é. Mas, aos seus próprios olhos, é perfeitamente normal, pois o raciocínio social curitibano sempre estará se perguntando: pra que tirar as mãos quentinhas do casaco para cumprimentar alguém? Onde está escrito que devemos cumprimentar as pessoas no elevador? Quem disse que elas querem responder às usuais perguntas sobre o clima que normalmente iniciam conversas que não levam a nada? Há dias em que não há vontade de conversar e neste ponto o curitibano é sincero e honesto.
TV: Qual foi a sua experiência pessoal ao se hospedar nas casas dos curitibanos?
EF: Primeiro, a superação de não me limitar ao mundinho em que vivia. Curitiba com seus 432 km2 me abriu os olhos, despertou minha vontade de ver o mundo.
Também valeu a descoberta de que existem vários tipos de curitibanos e de que aquela cidade que até então se resumia ao Batel a leste, ao Jardim Social a oeste, ao Jardim Botânico ao sul e de Santa Felicidade ao Norte tem fronteiras, bairros e pessoas que vão muito além disso.
TV: Sentiu diferenças de receptividade de acordo com o bairro e a classe social das famílias?
EF: Sim. Apesar de “ter menos”, a chamada periferia recebe muito melhor. É um carinho descompromissado, puro.
TV: Com a chegada de tantas pessoas de outras cidades para viver aqui, acha que o perfil do curitibano está mudando?
EF: Sim. Desde a metade dos anos 90 isto já está acontecendo.
O curitibano, em relação a um morador de Natal, Fortaleza ou Rio de Janeiro, ainda pode ser visto como frio e arredio. Mas já mudou muito. Fiquei um ano sem vir a Curitiba e, quando retornei, fiquei impressionado com os vários diálogos que desenvolvi. Não esqueçamos também que somos fruto do meio. De lá pra cá, esse meio mudou muito. Hoje há supermercados, restaurantes 24 horas que nos fazem sair da toca. Nem o frio é mais tão frio.
Curitiba e os curitibanos já são outros há muito tempo.
Agora, pra ser como um carioca ou um nordestino, falta muito. Creio que isso só acontecerá quando o derretimento das calotas polares chegar a tal ponto que Curitiba, finalmente, tenha uma praia no lugar do lago do Barigui.
TV: O que o curitibano tem de melhor e de pior?
EF: De melhor, a organização e o comprometimento com o que faz. Há muito profissionalismo na cidade.
Somos CDFs mesmo. De pior: o sotaque, a má utilização do pisca no trânsito e a timidez.
TV: Que coisas só acontecem em Curitiba?
EF: Muitos falam daquela história de se ter as quatro estações do ano em um só dia. Isso acontece em várias cidades. O que só vi em Curitiba: em 1833, chegaram à cidade os primeiros alemães, (seguidos por...) poloneses, italianos e ucranianos. Todos eles foram instalados em colônias predeterminadas pelo governo. (...) Muitos se ilharam em bairros distantes. (...) Até que todos aprendessem o português, o não falar com estranhos se tornou um hábito. Essa é a minha explicação. O interessante é que mais de um século se passou e essas colônias ainda hoje podem ser vistas na cidade.
TV: Como reconhecer um curitibano em qualquer lugar do mundo?
EF: Se ele abrir a boca, pelo sotaque. É inconfundível.
Até se ele estiver falando francês, é possível identificar o sotaque curitibano. Ele também pode ser reconhecido em algum supermercado de Viena, perguntando se ali vendem pinhão ou procurando latas de lixo para jogar um papel e tentar deixar mais limpinha uma rua suja de Bangcoc. Ah! E se em algum salão de beleza chinês você ouvir uma das freguesas soltar para a manicure um “guria, nem te conto!”, pode ter certeza de que é uma curitibana.
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